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Mariângela Hungria: A ciência transformou o Brasil em referência mundial em biológicos

Primeira brasileira a receber o World Food Prize, pesquisadora da Embrapa defende sustentabilidade, cooperativismo e inovação como chaves para o futuro da agricultura.

Referência internacional em agricultura sustentável, a pesquisadora Mariângela Hungria é uma das vozes mais respeitadas quando o assunto é solo vivo, produtividade com responsabilidade e biotecnologia aplicada ao campo. Engenheira agrônoma e doutora em ciência do solo pela USP/Esalq, ela atua há mais de 40 anos na Embrapa Soja, em Londrina (PR), onde lidera pesquisas sobre fixação biológica de nitrogênio, uso de inoculantes, bioinsumos e tecnologias de baixo carbono.

Membro titular da Academia Brasileira de Ciências e integrante de sua diretoria, Mariângela já coordenou diversos projetos nacionais e internacionais em parceria com universidades e centros de pesquisa de mais de 15 países.

Em 2025, tornou-se a primeira brasileira a receber o World Food Prize, o mais importante prêmio internacional na área de alimentação e agricultura, considerado o “Nobel da Agricultura”. Suas descobertas foram essenciais para transformar o Brasil em uma potência agrícola global, com impacto direto sobre mais de 40 milhões de hectares, gerando economia anual de até US$ 25 bilhões em insumos e evitando a emissão de mais de 230 milhões de toneladas de CO₂.

Seu trabalho ajudou a consolidar o Brasil como líder no uso de insumos biológicos, promovendo ganhos econômicos e ambientais em larga escala. Com uma atuação marcada pela defesa do produtor rural, a valorização da ciência brasileira e a busca por soluções acessíveis, Mariângela reforça também a importância do cooperativismo como elo essencial entre a pesquisa e o campo, garantindo que a inovação científica chegue, de fato, às mãos de quem produz.

Coopercitrus – Seu trabalho acaba de ser reconhecido com o World Food Prize, considerado o “Nobel da Agricultura”. Pode explicar brevemente sua pesquisa e qual tem sido o impacto dela para a agricultura brasileira?

Mariângela Hungria – Não sei exatamente por que me deram o prêmio. Quando me comunicaram, disseram que quem me selecionou foi um comitê secreto, que eu não poderia saber quem foi nem as razões. Falaram que tinha sido por unanimidade e que, na maioria das vezes, há divisão do prêmio, dado para duas ou três pessoas; no meu caso seria exclusivo para mim. Acredito que não tenha sido por uma pesquisa específica, mas por toda a carreira; são mais de quatro décadas trabalhando com biológicos. Imagino que tenham considerado minha persistência, resiliência e perseverança.

Entrei na faculdade em 1976, quando se vivia o auge da Revolução Verde. Na época, a teoria malthusiana apontava que a população crescia exponencialmente e já começava a faltar alimentos, criando um clima de que o mundo passaria fome em pouco tempo. O que aconteceu foi que Norman Borlaug, também agrônomo, mostrou que, por meio do melhoramento genético de milho e trigo, aliado ao uso intensivo de fertilizantes nitrogenados, era possível aumentar muito a produção. Ele tirou milhões de pessoas da fome e deu uma nova perspectiva para a humanidade, razão pela qual recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Mais tarde, criou a Fundação Norman Borlaug e o World Food Prize, que ele dizia ser um “Nobel da alimentação e da agricultura”.

No Brasil, a Revolução Verde foi decisiva. Até os anos 1960, o país importava alimentos e não conseguia garantir sequer a comida da própria mesa. Com a correção química do solo, foi possível avançar até mesmo no Cerrado, região antes considerada impraticável para a agricultura. Isso abriu espaço para exportações e transformações impensáveis. Porém, naquela época, só se falava em químicos; quase não havia espaço para os biológicos. Na graduação, tive uma ou duas aulas sobre o tema, em contraste com inúmeras voltadas aos químicos.

Minha escolha pela agronomia não veio de uma tradição familiar — meus pais eram educadores públicos —, mas de um desejo antigo. Desde criança, me impressionava ver pessoas passando fome, e eu dizia que queria fazer algo para mudar isso. Ao mesmo tempo, sentia que os biológicos tinham um espaço a ser conquistado e que eu queria seguir por esse caminho. Não foi fácil. Somente no último semestre encontrei uma pesquisadora que trabalhava na área, ligada a um instituto associado à USP, com quem consegui desenvolver um projeto que me levou ao mestrado e doutorado.

O início da carreira foi difícil. Quando me formei, todos diziam que eu estava escolhendo a área errada, que não havia futuro e que deveria mudar de rumo. Mas eu nunca tive dúvidas. Pelo contrário, cada crítica me fortalecia. Segui firme e dediquei quatro décadas aos biológicos, o que acredito ter pesado na escolha do comitê.

Também penso que contou o fato de eu ser mulher. Entre 56 laureados, sou apenas a décima. E acredito, assim como eles devem acreditar, que a agricultura do futuro e a segurança alimentar têm tudo a ver com as mulheres, que precisam ser mais prestigiadas e ter maior visibilidade.

Coopercitrus – O que esse prêmio representa para a agricultura nacional e para os produtores que estão na base dessa transformação?

Mariângela Hungria – Eu não esperava que o prêmio tivesse a repercussão que está tendo. É impressionante: o mundo inteiro ligando, pedindo entrevistas, escrevendo… realmente, um impacto muito grande. Vejo isso como uma oportunidade importante para divulgar a sustentabilidade da agricultura brasileira. Nós temos, sim, maus agricultores — assim como há maus profissionais em todas as áreas. Só que eles acabam sendo mais noticiados, principalmente quando se fala em fogo, desmatamento e outras práticas negativas. Mas eu trabalho há 40 anos com agricultores, desde movimentos de terra até o maior exportador de soja, e sei que a grande maioria é comprometida com a sustentabilidade. Eles se preocupam com a saúde do solo, com as mudanças climáticas, e adotam práticas responsáveis.

Quando mostramos que é possível produzir mais e ao mesmo tempo ser sustentável, eles aceitam. Prova disso é que, se nossa agricultura não fosse sustentável, não seríamos líderes mundiais no uso de biológicos, como os produtos com que trabalho. Hoje, 85% dos agricultores de soja usam insumos de fixação de microrganismos, um índice muito superior ao dos Estados Unidos, que chega a apenas 15% ou 20%. Também lideramos em várias outras práticas, como os 35 milhões de hectares cultivados em sistema de plantio direto. Temos ainda o Plano ABC+ e o Código Florestal, que espero continue sendo respeitado como deve.

É isso que tento divulgar no exterior. O Brasil não é perfeito. Temos problemas e precisamos melhorar, mas estamos no caminho certo. Um exemplo é o programa de recuperação de pastagens degradadas. No final da minha carreira, quero me dedicar a essa causa, usar biológicos para recuperar áreas que foram degradadas por erros do passado. A política de desmatamento, exploração da madeira, uso temporário para café e depois abandono é um absurdo, mas não adianta apenas olhar para trás. O que temos a fazer é corrigir e recuperar.

E o potencial é enorme. Hoje, cultivamos cerca de 80 milhões de hectares. Temos 160 milhões de hectares de pastagens, o dobro. Se recuperarmos essas áreas, podemos liberar pelo menos metade para agricultura, o que significa duplicar toda a área cultivada do Brasil sem derrubar uma árvore sequer. Esse é o nosso desafio: mostrar que temos problemas, sim, mas que estamos enfrentando tudo com responsabilidade, cabeça erguida e liderança em várias práticas sustentáveis.

Coopercitrus – A senhora dedicou sua carreira ao estudo e à defesa dos insumos biológicos como inoculantes e biofertilizantes. Na prática, de que forma essas soluções ajudam o produtor a produzir mais e melhor?

Mariângela Hungria – Acredito que o prêmio tenha reconhecido uma inovação na forma de pensar os biológicos. Quando comecei a trabalhar nessa área, a visão era de que eles funcionavam apenas para a agricultura familiar ou para sistemas orgânicos de pequena escala. Biológicos já eram usados no mundo inteiro, mas sempre estiveram limitados a esse contexto.

Quando tive a oportunidade de formar meu próprio grupo de pesquisa e criar um laboratório com independência para decidir os rumos do trabalho — o que aconteceu quando me transferi para a Embrapa Soja, em Londrina, após 10 anos na Embrapa Agrobiologia, no Rio de Janeiro —, pensei diferente. Eu não queria me restringir ao pequeno. Queria pensar grande e desenvolver pesquisas que atingissem os níveis mais altos de produtividade.

Sabia que os biológicos eram muito mais adequados para o meio ambiente e para a saúde do solo, mas isso precisava ser comprovado cientificamente. O óbvio não é ciência: era necessário reunir massa crítica de dados. E os resultados mostraram como, de fato, o uso de biológicos, em vez de químicos, melhora consistentemente os parâmetros de qualidade e saúde do solo. Isso porque eles vêm da própria natureza, da evolução de microrganismos em interação com plantas ao longo de milhões de anos.

Mas eu também sabia que não adiantaria convencer o agricultor apenas com o discurso ambiental. Ele precisa de lucro, vive da produção, quer rendimento. Por isso, a visão diferente foi mostrar que os biológicos podiam ser aplicados em larga escala e de forma economicamente viável.

Esse foi o trabalho que desenvolvi em 30 anos na Embrapa Soja: não apenas selecionar novos microrganismos, mas criar toda a tecnologia para aplicá-los, quando, como e de que maneira funcionariam. Hoje temos uma situação única no mundo: altos rendimentos na soja sem necessidade de fertilizantes nitrogenados. Todo o nitrogênio para a produção vem dos processos microbianos, graças ao pacote tecnológico desenvolvido e disponibilizado aos agricultores.

Coopercitrus – Muitos produtores querem adotar essas práticas, mas ainda têm dúvidas sobre aplicação e segurança. Por onde começar e como evitar erros nessa transição?

Mariângela Hungria – Temos uma inovação que realizamos este ano justamente para atingir mais de perto o agricultor cooperado. No centro de soja trabalhamos com grãos, soja, milho, trigo, e também com pastagens, sempre voltados ao desenvolvimento de produtos biológicos.

A Embrapa e as universidades não vendem nada. Nosso papel é desenvolver tecnologia, selecionar estirpes, estudar o pacote tecnológico. A parte comercial fica com empresas privadas, que podem ou não atuar em parceria conosco. Essas tecnologias são transferidas praticamente de graça para a indústria, que assume a produção e a distribuição aos agricultores.

O problema é que, por buscarem lucro, as empresas dão preferência aos grandes produtores. É mais vantajoso visitar uma propriedade de 10 mil hectares do que atender 100 pequenos agricultores. Assim, mesmo que os biológicos funcionem igualmente bem para grandes e pequenos, só os grandes estavam adotando, porque, além do produto, recebiam assistência técnica. Já os pequenos e médios ficavam sem apoio, e não existiam nem mesmo embalagens adequadas. Eram cada vez maiores, inviáveis para quem tem áreas reduzidas. No Brasil, por exemplo, 73% dos produtores de soja cultivam menos de 50 hectares, mas não havia produtos pensados para eles.

Para quebrar esse ciclo, firmamos a primeira parceria da Embrapa para desenvolvimento tecnológico diretamente com uma cooperativa, a Coopavel. Este ano lançamos nosso primeiro produto com o compromisso de atender pequenos e médios agricultores, inclusive em termos de embalagens. A cooperativa também garantirá assistência técnica focada no uso correto. Apostamos muito nesse projeto e acreditamos que, se for bem-sucedido, poderá mostrar à indústria que atender esse público também é viável.

Vejo um futuro enorme para os biológicos no Brasil. A adoção cresce em ritmo exponencial, mas daqui para frente será fundamental o envolvimento das cooperativas. Se depender apenas da indústria, os biológicos continuarão restritos aos grandes. E a agricultura brasileira precisa dos médios e pequenos. Hoje, mesmo sendo líderes mundiais no uso de biológicos, eles representam apenas 10% a 15% do mercado em relação aos químicos. Temos tecnologia pronta para chegar a 50% ou 60%. Para avançar além disso, será necessário investir em mais pesquisas. Por isso, a participação das cooperativas será decisiva para ampliar o uso de biológicos na agricultura nacional.

Coopercitrus – Como as cooperativas podem participar na difusão desse conhecimento? 

Mariângela Hungria – A extensão agropecuária está fragilizada no país. Mesmo em estados como São Paulo, que sempre foram referência e modelo em extensão rural, a situação se deteriorou. Com isso, pequenos e médios agricultores acabam desassistidos. Diante desse cenário, as cooperativas estão assumindo esse papel, pois a ausência de apoio impacta diretamente a produção de alimentos e, principalmente, a vida desses agricultores. Por isso, considero que nunca foi tão importante a liderança das cooperativas nesse processo.

Coopercitrus – Que mensagem a senhora deixaria aos mais de 40 mil cooperados da Coopercitrus que atuam diariamente em busca de mais eficiência, rentabilidade e responsabilidade no campo?

Mariângela Hungria – Acredito que a agricultura do futuro deve valorizar as qualidades femininas. Isso não significa que os homens não possam tê-las, mas se trata de uma visão diferente, voltada à preocupação com a saúde do solo, à produção de alimentos mais saudáveis, com menos resíduos químicos e com menor impacto ambiental.

Percebo que muitas agricultoras demonstram esse olhar mais atento, enquanto parte dos agricultores ainda foca apenas em ser campeão de produção, gerar mais lucro e colher o máximo possível. O que defendemos é outra lógica: não basta produzir mais, é preciso produzir com sustentabilidade.

E não é apenas opinião. Temos dados científicos robustos que comprovam que investir em práticas conservacionistas e no uso de biológicos aumenta a resiliência do solo, garantindo maior constância de produção. Propriedades que adotam práticas sustentáveis conseguem manter boas safras mesmo em anos de seca ou adversidades climáticas, enquanto outras perdem tudo.

Os resultados mostram que, ao longo de dez safras, é como se o produtor ganhasse uma safra a mais apenas por não sofrer tantas perdas. Portanto, agricultores, é hora de adotar esse olhar mais sustentável, voltado à qualidade do solo e à oferta de alimentos melhores, e não apenas à competição ou ao desejo de superar o vizinho.

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