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Tendência de concentração desafia pequenos produtores de cana-de-açúcar

Nos últimos 14 anos, o número de fornecedores independentes caiu 38%, revelando um deslocamento da produção para médios e grandes produtores. Especialistas apontam caminhos para ganhar relevância com gestão, tecnologia e organização

A produção de cana-de-açúcar está cada vez mais concentrada nas mãos de grandes fornecedores, enquanto os pequenos enfrentam crescentes desafios operacionais, financeiros e estruturais para permanecer na atividade. Essa constatação é resultado do Estudo de Perfil dos Fornecedores de Cana-de-Açúcar, conduzido pelo Pecege sob demanda da Orplana, com base em dados de 2010 a 2024, e apresentado no Plana Summit, em Brasília.

Em pouco mais de uma década, o número de fornecedores independentes de cana-de-açúcar caiu 38%. Se antes predominava um cenário fragmentado, com milhares de pequenos produtores espalhados pelo Centro-Sul, agora a balança pende cada vez mais para os médios e grandes produtores. O movimento é reforçado por uma mudança na escala de produção: enquanto os pequenos diminuem em número e participação na moagem, os maiores consolidam sua presença.

Em 2010, os pequenos produtores (com até 12.500 toneladas por safra) representavam cerca de 90% dos fornecedores e contribuíram com 8,6% da cana moída. A pesquisa revelou uma queda de 38% no número de fornecedores filiados à Orplana nos últimos 14 anos. Apesar de representarem mais de 87% do total de produtores, os pequenos respondem por apenas 3,2% da cana moída. Em contrapartida, os grandes produtores (acima de 100 mil toneladas), que representam menos de 10% da base, concentram 44,3% da moagem.

Hoje, estima-se que existam cerca de 58 mil produtores independentes no Brasil, mas esse número pode estar inflado pela inclusão de parcerias e acionistas de usinas. Ainda assim, o que os dados apontam de forma consistente é o encolhimento da base produtiva mais pulverizada e o fortalecimento de estruturas mais robustas e verticalizadas.

Essa transição não ocorre sem impactos. Unidades industriais, em sua maioria, estão reduzindo a participação da cana fornecida por terceiros e aumentando sua produção própria. Entre as usinas analisadas, 33% reduziram significativamente o volume vindo de fornecedores enquanto ampliaram suas áreas cultivadas.

Segundo o especialista da Pecege, o cenário atual espelha transformações semelhantes às já vistas em cadeias como a do leite e da laranja, onde o pequeno produtor encontra cada vez mais obstáculos para se manter competitivo diante das exigências tecnológicas e econômicas do setor.

Diante dessas tendências, o setor sucroenergético brasileiro parece caminhar para um novo modelo, em que o produtor de médio e grande porte assume protagonismo — e o pequeno fornecedor, antes pilar da cadeia, luta para não desaparecer.

Na edição especial, trazemos o debate entre João Rosa, o conhecido João Botão, sócio e diretor do Pecege Consultoria e Projetos, responsável pelo estudo; Guilherme Caus, coordenador de marketing e engenheiro agrônomo da Coopercitrus; e Fábio Cordeiro, especialista em cana-de-açúcar. Os três compartilham suas visões sobre o avanço da concentração produtiva, os desafios enfrentados pelos pequenos fornecedores e o papel estratégico da tecnologia e da gestão profissional na sustentabilidade do setor.

Coopercitrus – Como surgiu o desenvolvimento do estudo ‘Relevância do setor de cana. Perspectivas de mercado e impacto de políticas chaves no setor’?

João – A motivação foi entender a relevância do perfil atual do produtor de cana no mercado. Existe uma tendência de que o pequeno produtor esteja saindo do negócio, principalmente por questões relacionadas à escala de produção, ao poder de compra de insumos e à capacidade de negociação com as usinas. Fizemos uma análise histórica para avaliar esse cenário. A produção de cana está migrando para novos perfis de produtores médios e grandes. Para se ter uma ideia, atualmente cerca de 85% dos produtores produzem menos de 10 mil toneladas, mas respondem por apenas 20% da produção total. No passado, essa proporção era diferente, com mais fornecedores de pequeno porte. O número de fornecedores caiu. O grande alerta é o risco da concentração produtiva nas mãos das indústrias, como já aconteceu com a cadeia da laranja e do leite.

Fábio – Trabalhei em algumas usinas que somavam aproximadamente 60 hectares de área, entre arrendamentos próprios e fornecedores. A média das áreas era de cerca de 25 hectares. Havia muitos fornecedores pequenos. Já os grandes fornecedores, são poucos, “meia dúzia”. E esse movimento é recente.

Coopercitrus – O estudo cobriu quais regiões?

João – O estudo analisou a região Centro-Sul, com foco nas áreas de atuação da Orplana, abrangendo os estados de São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e o Triângulo Mineiro. A grande dificuldade hoje, se considerarmos os dados do Ministério da Agricultura, é que o número de fornecedores gira em torno de 40%. No entanto, tanto nós quanto a própria Orplana não acreditamos nesse dado. Há muitas áreas em que a usina realiza o pagamento por meio de arrendamento ou em formato de parceria, e essas parcerias não são contabilizadas como fornecimento de cana. Por isso, esse número pode estar superestimado. O dado mais realista que temos indica que a participação dos fornecedores de cana fica em torno de 25%.

Coopercitrus – Essa migração vem ocorrendo desde quando?

João – A base histórica aponta o início desse processo em 2010. Do ponto de vista das usinas, é preferível negociar com fornecedores de maior porte e estrutura, que atendam às demandas com mais eficiência. A cana-de-açúcar não é uma cultura de baixa complexidade e há uma tendência clara de migração da produção para escalas maiores.

Coopercitrus – Acreditam que o enrijecimento das leis trabalhistas no plantio contribuiu para essa migração?

João – Sim, esse foi um dos fatores que contribuíram. O pequeno produtor, por ser de menor porte, muitas vezes evita correr riscos relacionados ao cumprimento das normas justamente por estar mais exposto à fiscalização. Como a atividade tem alta intensidade de operações manuais, existem diversas exigências trabalhistas que ele nem sempre consegue atender. A alternativa seria mecanizar, mas, com uma escala reduzida, o maquinário acaba ficando ocioso. Em contrapartida, quando o produtor está vinculado a uma usina, ela mesma colhe para ele, o que facilita bastante. Esse é o ponto central: quando a usina assume uma posição de parceira, ela colhe, planta e opera a lavoura. Em regiões como Assis, no interior de São Paulo, por exemplo, já existem parcerias estabelecidas neste formato. Mas a usina irá preferir ter maiores conglomerados de produção para operar, negociar com mais facilidade e diversificar sem risco.

Fábio – Por exemplo, quando precisa colher cana em 200 áreas pequenas, é totalmente diferente de colher em apenas três áreas maiores. O produtor pequeno, no meio disso tudo, acaba ficando perdido. É difícil tanto para a colheita quanto, por exemplo, para uma aplicação aérea. E tem ainda a questão das certificações. Hoje, todas as usinas estão caminhando para atender padrões como o Bonsucro, exigências da própria Coca-Cola e outras certificações internacionais. Para isso, a usina precisa de um sistema estruturado, porque o pequeno produtor, muitas vezes, não consegue atender a todos os critérios técnicos exigidos. não dá para depender da ‘carência do perito’, por exemplo. É preciso garantir a rastreabilidade da cana desde a origem até a produção do açúcar que será exportado. Operacionalizar tudo isso com muitos pequenos produtores é bastante complexo, especialmente porque, às vezes, eles não seguem corretamente os protocolos de aplicação.

Guilherme – A rastreabilidade vai exigir cada vez mais, e a usina é corresponsável por isso. Se houver qualquer problema com o açúcar, é a usina que terá que responder. Não se trata apenas de ser uma cultura de grande escala, mas também de atender a todas as exigências de controle e qualidade do início ao fim do processo.

João – E tem ainda a questão da sucessão, que também impacta esse cenário. O produtor possui uma determinada área, mas não tem um sucessor. Quando ele falece ou acontece algo, essa área é dividida entre os filhos, fragmentando ainda mais as propriedades. Esse é outro sinal de alerta que contribui para a concentração do setor.

Coopercitrus – Quais são as orientações para que esses produtores permaneçam na atividade?

João – É fundamental que o produtor tenha um sistema que o ajude a alcançar um volume de cana mais expressivo ou, ao menos, manter um ótimo relacionamento com a usina. No entanto, é importante destacar que há uma tendência de redução da participação dos pequenos produtores. Não estou dizendo que eles vão desaparecer, mas a relevância deles no setor tende a diminuir.

Fábio – Em algumas regiões as usinas ainda são bastante dependentes dos pequenos produtores. Porém, há outro desafio importante: a sucessão. Em muitos casos, o filho até quer continuar na atividade, mas aparece uma proposta de parceria com a usina e a área acaba sendo arrendada. Aqui na região de Ribeirão Preto, por exemplo, esse tipo de transição é mais difícil de acontecer.

Coopercitrus – Em relação a investimentos, acesso a linhas de crédito e tecnologias, isso impacta também no perfil desse?

João – Sem dúvida. A safra 2025/2026 começa com grandes incertezas. O crédito está caro, com juros em torno de 18% ao ano. Isso gera receio por parte do produtor, que fica temeroso em buscar financiamentos. O acesso ao crédito se tornou um dos principais desafios, e isso impacta diretamente os investimentos no campo. É uma questão complexa.

Coopercitrus – Diante de um cenário como esse, qual é o papel da Coopercitrus na orientação de produtores com esse perfil?

Guilherme – Para ser relevante para a usina, a máquina precisa colher de forma eficiente, tornando cada vez mais vantajoso o processo e compensando o trajeto. A lição de casa, tanto para o produtor quanto para a cooperativa, é investir na produtividade, com foco em produtividade por hectare. Esse é o grande segredo: saber otimizar a colheita e garantir que a produção, como a da roça do João, seja entregue de forma eficiente.

Fábio – O objetivo é melhorar a qualidade da matéria-prima, pois a colheita de cana tem um custo elevado. A usina precisa colher cana de qualidade, com bom ATR, sem brocas, limpa e livre de mato. Já é uma operação cara, e, com áreas pequenas, é difícil pagar por uma matéria-prima de baixa qualidade. Precisamos trabalhar nesse sentido. A assistência técnica deve focar tanto no canavial quanto na gestão de produção e qualidade. Além disso, é fundamental que o cooperado, o produtor, faça as contas para garantir a viabilidade econômica.

João – Hoje, apenas 7% do custo de produção está relacionado aos defensivos agrícolas, e muitas vezes esse é o primeiro item que o produtor corta, pois impacta diretamente no fluxo de caixa. No entanto, ao fazer isso, ele compromete a sua produção. É preciso investir em produtividade, mas a principal deficiência do produtor está na gestão. Se ele não organizar as contas corretamente, o negócio não fecha. O controle do fluxo de caixa é essencial. Fico contente quando vejo o produtor anotando tudo no papel, porque quando ele faz isso, está se preocupando com a gestão. Pergunto para o produtor de cana qual é o custo dele. Se ele souber a resposta de imediato, principalmente os menores, é um bom sinal. Eles têm uma visão de caixa, mas, às vezes, não sabem se o negócio está realmente compensando. É necessário trabalhar a produtividade para garantir a viabilidade financeira.

Coopercitrus – Qual mensagem vocês deixam aos produtores rurais?

João: O perfil do produtor de cana está mudando. É uma cultura que exige escala de produção, especialmente por envolver uma dinâmica operacional com máquinas de grande porte, investimentos e operações complexas. Reforço a mensagem: melhore sua gestão, busque tecnologias e experimente novas práticas, pois o cenário está em constante transformação — é preciso se atualizar. É fundamental quebrar resistências. O plantio manual, por exemplo, tende a desaparecer devido aos altos custos, às exigências trabalhistas e à escassez de mão de obra. Isso é um caminho sem volta. A mesma transição ocorreu com a colheita manual no início dos anos 2000, quando havia resistência em investir em máquinas por medo de pisoteio e perda de longevidade do canavial. Hoje, ninguém quer voltar atrás. A tecnologia avançou muito, embora as máquinas ainda tenham espaço para melhorias. E seguimos enfrentando falta de mão de obra no campo.

Guilherme: O que paga a conta é a tonelada por hectare. Mas o principal ponto, como vocês já mencionaram, é aprender a fazer gestão. O produtor vai saber que está fazendo uma boa gestão quando tiver sua curva produtiva bem definida. Ele vai saber, por exemplo, o momento ideal para reformar o canavial, com base em dados: se é aos 50, 70, 80 ou 100 toneladas por hectare. Isso só é possível com um controle claro dos custos e da rentabilidade por área.

João: O que realmente coloca dinheiro no bolso é a margem. Produtividade e longevidade do canavial são pilares fundamentais, mas, se eu for produtivo e gastar demais, no fim das contas não sobra margem. Hoje, o produtor tem acesso à tecnologia, tanto em maquinário quanto em insumos, porque a informação chega até ele, seja por visitas técnicas ou canais de comunicação. O que ainda falta é gestão. Ele pode ter o melhor trator, as melhores variedades, insumos e técnicas, mas se não fizer as contas, nada disso se sustenta. Às vezes, vemos produtores com máquinas grandes que não condizem com sua necessidade real, e isso representa um custo altíssimo. É preciso quebrar paradigmas: conversar com vizinhos, com as usinas, com as cooperativas. A tecnologia está aí, em variedades, nutrição, correção do solo — mas a gestão não pode ficar de fora. Basta abrir a mente, buscar inovação e observar. O produtor às vezes é como Tomé, só acredita quando está funcionando na área do vizinho para também aplicar. Gestão é o que transforma a informação e a tecnologia em resultado.

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